O
RISCO DA CRENDICE
Daniel Hessel Teich
(Entrevista com Michael Shermer
para VEJA)
O psicólogo americano Michael
Shermer dedica-se há nove anos ao que considera uma
cruzada: em defesa do pensamento científico, ele combate
superstições, crendices e mitos. Suas armas são
palestras que faz pelos Estados Unidos, cursos no
Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech),
participações em programas de televisão e de rádio e
sete livros sobre o assunto. O último deles, Fronteiras
da Ciência: onde o que Faz e o que Não Faz Sentido Se
Encontram, foi lançado no ano passado nos Estados
Unidos. Shermer é diretor da Sociedade dos Céticos, uma
espécie de ONG que tem entre os simpatizantes cientistas
do calibre do paleontólogo Stephen Jay Gould, um dos
principais escritores de divulgação científica do
mundo. Colunista da revista Scientific American,
ele mantém um site na internet dedicado a desmascarar
charlatães. Quando não está debatendo com crédulos de
todos os matizes ou escrevendo livros, Shermer se dedica
a outras tarefas não menos desgastantes. É apaixonado
por corridas e enduros de bicicleta e participante
assíduo de competições como a Race Across America, que
cruza os Estados Unidos de ponta a ponta.
Veja - Por que o
senhor afirma que estamos vivendo um momento de
irracionalismo?
Shermer - Nós somos menos crédulos e
supersticiosos do que eram as
pessoas há 500 anos. A história é outra se compararmos
com 25 anos atrás. O irracionalismo só tem aumentado.
Pesquisas mostram que cada vez mais se acredita em
astrologia, experiências extra-sensoriais, bruxas,
alienígenas e discos voadores, na existência da
Atlântida. Há uma lista enorme de coisas absurdas. O
espantoso é que não são apenas os lunáticos que
crêem nessas coisas. Muita gente com bom nível de
educação também cai nessa. São crenças pegajosas,
que se fixam de forma muito mais forte do que podemos
imaginar.
Veja - Por que isso acontece?
Shermer - O irracionalismo tem aumentado
principalmente por culpa da comunicação de massa e da
internet. As pessoas que vivem da exploração dessas
crenças são hábeis na exploração desses recursos.
Usam técnicas de vendas como telemarketing, anúncios e
promoções. As religiões tradicionais vêm perdendo
muito espaço nos últimos anos, o que tem deixado um
campo aberto para crenças alternativas como
paranormalidade e cultos da nova era.
Veja - Não é paradoxal que isso
aconteça no momento em que o conhecimento e a ciência
sejam tão difundidos?
Shermer - A explicação é simples. As
pessoas procuram crenças que as
consolem, coisa que a ciência não faz. É mais fácil
acreditar em crendices e superstições que na ciência.
As pessoas querem respostas para questões de cunho
moral, que a ciência não tem como responder. Nós não
devemos esquecer que todos os seres humanos, entre eles
os cientistas e os céticos, querem ter uma vida melhor.
Sob esse ponto de vista, é difícil resistir ao canto de
sereia do misticismo.
Veja - O que o senhor acha do enorme
sucesso no Ocidente de orientalismos como o feng shui, a
doutrina chinesa que propõe o uso da decoração e da
arquitetura para reequilibrar a energia das pessoas?
Shermer - As pessoas estão tentando dar
sentido às coisas à sua volta. Querem botar ordem num
caos que não conseguem compreender. Coisa parecida
acontece entre as tribos animistas da Amazônia. Os
índios crêem que o mundo está repleto de espíritos e
forças que ajudam a arrumar esse caos e tratam de
invocá-los como podem. É claro que os brasileiros que
vivem nas grandes cidades não levam a sério o animismo
dos ianomâmis e provavelmente ririam dos pajés se os
vissem tentando arrancar os encantamentos e os espíritos
que eles acreditam ser a causa das doenças. Na verdade,
essas crenças dos povos primitivos têm tanto fundamento
científico quanto as bobagens oferecidas pelos pajés do
feng shui.
Veja - O senhor poderia enumerar
algumas dessas crenças que foram moda nos últimos anos
e logo depois abandonadas como charlatanices?
Shermer - Todos se lembram dos famosos
biorritmos, aquela história de que era possível usar os
ciclos do corpo que se repetem em ritmos regulares para
traçar previsões sobre a carreira, a vida amorosa e o
futuro financeiro de uma pessoa. Muita gente ganhou
fortunas com isso e hoje ninguém mais toca no assunto.
Outra bobagem foi o Triângulo das Bermudas. Dizia-se que
era um lugar onde navios e aviões desapareciam
misteriosamente. Há ainda o poder das pirâmides, que se
acreditava capaz de conservar comida, afiar facas e até
aumentar a potência sexual. É bobagem pura, que
ninguém mais leva em consideração. Há também as
cirurgias psíquicas nas Filipinas e na América do Sul,
mas já são menos freqüentes. Foram desmoralizadas
depois que mágicos demonstraram a facilidade com que se
produzem os truques ditos paranormais.
Veja - O que o senhor pensa de quem
acredita em duendes e bruxas?
Shermer - Adultos crêem nisso pela
mesma razão por que acreditam no feng shui. O ser humano
é um bicho que se senta em torno da fogueira e conta
histórias. E com isso adquire experiência para
enfrentar o mundo. É assim desde os tempos das cavernas.
Ocorre que, com a diversidade de culturas, os povos fazem
isso numa miríade de formas, chamando as forças
animistas de diferentes nomes. Duendes e bruxas são dois
entre milhares deles. O que importa é que por baixo de
todos esses nomes está a crença nas superstições e a
necessidade de explicar o mundo de forma mágica.
Veja - Como o senhor justifica a
vantagem do pensamento científico sobre o obscurantismo?
Shermer - A ciência é o único campo
do conhecimento humano com característica progressista.
Não digo isso tomando o termo progresso como uma coisa
boa, mas sim como um fato. O mesmo não ocorre na arte,
por exemplo. Os artistas não melhoram o estilo de seus
antecessores, eles simplesmente o mudam. Na religião,
padres, rabinos e pastores não pretendem melhorar as
pregações de seus mestres. Eles as imitam, interpretam
e repetem aos discípulos. Astrólogos, médiuns e
místicos não corrigem os erros de seus predecessores,
eles os perpetuam. A ciência, não. Tem características
de autocorreção que operam como a seleção natural.
Para avançar, a ciência se livra dos erros e teorias
obsoletas com enorme facilidade. Como a natureza, é
capaz de preservar os ganhos e erradicar os erros para
continuar a existir.
Veja - Acreditar em superstições
é um comportamento de risco?
Shermer - A maior parte das pessoas
pensa que acreditar em espíritos ou telepatia é
inofensivo. Não é. Por uma razão simples: quem
acredita em coisas para as quais não existe nenhuma
evidência pode acreditar em tudo. Da mesma forma que o
consumo de maconha pode levar à heroína, crenças
simplórias em fantasmas e discos voadores podem levar a
outras mais perigosas.
Veja - Como é possível separar o
que é ciência do que é pseudociência?
Shermer - É uma tarefa complexa. Eu
adoto um modelo para definir, de um lado, a ciência
consagrada e, de outro, a pseudociência. Entre ambas há
uma zona cinza, fronteiriça. Nessa região ficam linhas
de pesquisas feitas por profissionais sérios,
perscrutadas por publicações científicas de
prestígio, mas que têm objetos de estudo um tanto
quanto exóticos. Podem, de um momento para outro, cair
tanto para o lado da ciência quanto para o da crendice.
Na área cinzenta estão a busca de vida fora da Terra, a
acupuntura e teorias econômicas, como o socialismo. Na
área da não ciência estão a astrologia, a negação
do holocausto e a ufologia.
Veja - A exploração de crendices
é um grande negócio. O senhor tem como avaliar o
dinheiro que isso movimenta?
Shermer - Ninguém sabe exatamente
quanto se movimenta nesse mercado que envolve milhares de
formas de ganhar dinheiro. Só os medicamentos
alternativos rendem dezenas de bilhões de dólares por
ano. Assim, se considerarmos todas as categorias juntas,
eu calcularia o lucro da pseudociência em 1 trilhão de
dólares por ano. Temos de lembrar ainda que essa fonte
de ganho se torna ainda mais tentadora quando se trata de
religiões e seitas isentas de impostos.
Veja - Por que esse é um negócio
para o qual parece não existir fronteiras?
Shermer - As pessoas gostam de acreditar
que as coisas não acontecem por si mesmas, mas por
alguma razão ou motivo. Uma pesquisa mostra que um dos
motivos de as pessoas acreditarem em Deus é o fato de
que o mundo é tão bonito e o universo segue mecanismos
tão delicados que seria impossível não existir um
criador para tudo isso. Esse é, de certa forma, um
pensamento baseado em conhecimento científico, nas
relações de causa e efeito. Precisamos levar em conta
que nem sempre há motivos ou explicações para tudo o
que queremos.
Veja - Alguns cientistas tentam
entender o poder da fé e das orações na cura de
doenças. O que o senhor acha desses estudos?
Shermer - Eles são falhos por três
razões primárias. A primeira: não há como comprovar
cientificamente se as pessoas estudadas têm fé ou se
estão rezando. Elas dizem que têm, e ponto final.
Segunda: muitos desses estudos não avaliam variáveis
importantes como idade, sexo, situação socioeconômica,
condições físicas, fatores que poderiam contribuir
para outros resultados. E, por último, a maioria dos
resultados de um estudo desses não pode ser repetida. As
variáveis de análise são tão subjetivas que um estudo
jamais terá o resultado semelhante ao de outro. Ou seja,
essas pesquisas não são nem um pouco confiáveis.
Veja - Por que uma das mais
populares práticas místicas gira em torno de pessoas
que se propõem a conversar com os mortos ou realizar
curas com a ajuda deles?
Shermer - Porque a morte é um problema
crucial para o homem. Todos nós queremos acreditar que
depois dela continuaremos a existir, seja na forma que
for. Os médiuns que convencem as pessoas de sua
capacidade de falar com os mortos validam as crenças de
que de fato há vida após a morte. Também oferecem um
alento em meio à tristeza da perda de uma pessoa amada.
É confortante crer que o falecido está em um lugar
acessível com a ajuda da mediunidade.
Veja - O fato de ajudar as pessoas a
superar a dor da perda não valida essas práticas?
Shermer - Aqueles que exploram a dita
mediunidade não estão ajudando ninguém. São
oportunistas que se aproveitam da emoção de pessoas
fragilizadas. A melhor forma de superar a morte é
encará-la de cabeça erguida. A morte é uma parte da
vida, e fingir que o morto pode falar em estúdios de TV
ou salas escuras por intermédio de pessoas que cobram
por seus serviços é um insulto à inteligência dos que
estão vivos.
Veja - O senhor acha possível
acreditar no sobrenatural e ao mesmo tempo estar a salvo
dos charlatães?
Shermer - O problema de acreditar em
superstições é que a maioria das pessoas que crêem
uma delas acredita também em todas as outras. As
crendices estão fortemente relacionadas. Se você
abandona a capacidade crítica de pensar cientificamente,
pode acreditar em absolutamente tudo.
Veja - Mas há pessoas que acreditam
em astrologia e também na teoria da evolução proposta
por Charles Darwin.
Shermer - A maioria das pessoas tem um
modo de raciocínio em que mantém as crenças de forma
isolada. Seria como se o cérebro fosse composto de uma
série de compartimentos a vácuo, com cada uma dessas
coisas guardada de maneira a não se misturar.
Veja - O senhor acha que as pessoas
que acreditam em coisas estranhas são propensas ao
fanatismo religioso?
Shermer - Não acho que seja assim. As
pessoas crédulas acreditam em muitas coisas, isso para
não dizer que crêem em qualquer coisa. Para ser
fanático é preciso uma crença fortíssima em uma
única coisa.
Veja - O que o senhor diz a uma
pessoa que acredita em vida após a morte quando ela lhe
pergunta se isso é verdade?
Shermer - Nós temos a obrigação de
falar a verdade em todas as ocasiões, a todas as
pessoas, sejam elas adultos ou crianças. Não há
nenhuma evidência de que exista de fato vida após a
morte. A questão é falar isso de uma forma amigável e
ponderada e mostrar que é possível levar a vida em
plenitude. Elas irão entender que não há grandes
problemas em ser cético.
Veja - O que levou o senhor a se
envolver numa cruzada contra as crendices?
Shermer - É simples. Eu sou um homem
que acredita na ciência. Meu sonho é ver nossa espécie
sobreviver a nossas limitações e sair deste planeta,
procurar outras estrelas parecidas com o Sol e partir
para outras galáxias. O obscurantismo limita nossa
capacidade de ousar e de superar nossas limitações. Sem
a ciência não existe crescimento cultural ou material
de uma sociedade.
Veja - O senhor tem algum tipo de
crença religiosa?
Shermer - Eu me defino como um
agnóstico, uma pessoa que acredita naquilo que pode ser
comprovado. Citando o biólogo Thomas Huxley, parceiro de
Darwin e pai do agnosticismo, sou daqueles que acreditam
em Deus como um problema insolúvel.
Esta entrevista com Michael
Shermer foi originalmente publicada na revista
VEJA, edição de 9 de janeiro de 2002, páginas
9 a 13.
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