A mente assombrada
JORGE A. B. SOARES
"As guerras religiosas e a caça às bruxas teriam
sido bem menos numerosas ao longo da história, houvessem as alucinações sido
conhecidas como fenômenos naturais e houvessem os 'possuídos pelo diabo'
sido considerados doentes." Esta frase célebre de Robert L. Thorndike
resume perfeitamente a percepção da revolução causada pelo avanço da
neurociência durante as últimas décadas.
Ao longo dos séculos, a natureza aparelhou o cérebro
humano de circuitos neurais que permitiam a tomada de decisões rápidas a
partir do estoque de informações disponíveis no momento. Assim, qualquer
incidente atípico que ocorria na vida de uma pessoa era explicado e atacado
a partir das crenças e costumes da época, que foram se consolidando ao longo
do tempo no que chamamos de mitos, arte, folclore, religião.
Até poucas décadas atrás, muitos fenômenos
misteriosos não eram bem compreendidos nem tinham uma explicação
satisfatória. Mas hoje a situação é auspiciosamente diferente: pode-se
dizer, sem medo de errar, que praticamente não existe mais nenhum fenômeno
paranormal ou misterioso que não tenha uma explicação científica adequada.
Abordemos o caso da alucinação: na nossa mente, a
área de consciência recebe continuadamente fluxos de sinais externos
(provenientes dos 5 sentidos) e internos (provenientes da memória e outros
circuitos neurais). A tarefa principal da consciência é construir a todo o
tempo um modelo do mundo que faça sentido. As alucinações acontecem quando
um elemento interno dispara um padrão de atividade equivalente ao que é
normalmente gerado quando órgãos dos sentidos respondem a um evento
publicamente observável. Na verdade existe uma certa competição entre esses
fluxos de sinais internos e externos, e quando por alguma razão o fluxo de
sinais externos enfraquece ou se deteriora, o fluxo interno se sobrepõe ao
externo. Isso explica porque as alucinações são disparadas por privação
sensorial, sobrecarga sensorial (especialmente estímulos intensos
repetitivos), insônia prolongada, jejum prolongado, desidratação, fadiga,
febre alta, delírio, privação de oxigênio, hiperventilação, isolamento
social, estados hipnagógicos e hipnopômpicos, ingestão de drogas
psicodélicas, hipnose, etc.
As alucinações sempre aproveitam material já
arquivado anteriormente na memória do indivíduo e que é interpretado de
acordo com o seu sistema de crenças e valores. Isso explica como a visão
noturna de lampejos de luz provoca visões de veículos espaciais completos;
uma cortina balançando ao vento na janela de um quarto escuro é vista como
um fantasma ameaçador; ou a Xuxa deitada na cama em seu sítio vê um duende
que lhe puxa o lençol. Isso aconteceu porque discos voadores, fantasmas e
duendes já eram parte importante do universo cultural particular dessas
pessoas.
O neurologista Oliver Sacks, em seu magistral livro
“A Mente Assombrada”, afirma que “... as alucinações não pertencem
inteiramente ao campo da loucura. Frequentemente, estão ligadas a privações
sensoriais, intoxicações, doenças ou lesões. Pessoas que sofrem de enxaqueca
podem ver arcos brilhantes ou pequenas figuras humanas e de animais. Ao
mesmo tempo, deficientes visuais podem viver imersos em um mundo visual
alucinatório. As alucinações podem ser provocadas por uma simples febre ou
até mesmo pelos prosaicos atos de despertar e adormecer, em imagens que vão
de manchas coloridas a belos rostos ou monstros terríveis. Pessoas de luto
podem receber reconfortantes ‘visitas’ de entes queridos. Em alguns casos,
as alucinações levam a epifanias religiosas ou até mesmo à sensação de se
deixar o próprio corpo”.
O avanço das neurociências nas últimas décadas nos
ensina que esses fenômenos estranhos e misteriosos que por milhares de anos
intrigaram e seduziram a humanidade são causados por falhas (defeitos) no
funcionamento do cérebro ou estados alterados da consciência, transitórios
em sua maioria, que nos ajudam a explicar um sem número de relatos
extraordinários tais como: 1) aparições de fantasmas, monstros, lobisomens,
fadas, duendes, gnomos; 2) visões místicas de anjos, deuses,
santos, demônios; 3) encontros com extraterrestres; 4) regressão a
vidas passadas; 5) viagens fora do corpo; 6) experiências de
quase-morte.
É preciso que a Psiquiatria e as Neurociências
continuem aprofundando a investigação dos fenômenos paranormais e façam
chegar às massas esse conhecimento fundamental tão útil à compreensão e
equilíbrio do nosso ser.
Jorge A. B.
Soares
é Engenheiro Agrônomo e mantém dois sites sobre pensamento crítico:
“Paranormal e Pseudociência em Exame” e “Skeptic’s Digest”. |