Eu me vi lá de cima
Cientistas mostram que estimulação elétrica do cérebro
cria experiência
extra-corporal
Detalhe da tela Estação de Perpignan, de Salvador Dalí (1965)
Os filmes já mostraram a cena várias
vezes: enquanto a equipe da emergência lança mão dos últimos recursos de
ressuscitação, o paciente, cujo coração já parou de bater, vê um túnel
de luz, avista seu corpo lá de cima e é acolhido serenamente por um
parente querido. Assim seria a passagem para o lado de lá da vida −
exceto nos casos em que, por desígnio divino, insistência dos médicos ou
pura sorte mesmo, a pessoa volta para contar a estória.
Uma mulher na Suíça, no entanto, acaba de ter uma experiência parecida −
sem correr o menor risco de vida. A paciente, que há 11 anos sofria de
epilepsia, estava sendo avaliada para uma cirurgia de remoção do foco
epiléptico. Como nenhuma lesão era visível no exame por ressonância
magnética, a equipe do Dr. Olaf Blanke, do Hospital Universitário de
Genebra, usou eletrodos posicionados sobre o cérebro da paciente para
localizar precisamente a região do cérebro a ser removida.
Como a atividade elétrica do cérebro é anormal sobre o foco epiléptico,
o simples registro pelos eletrodos é suficiente para indicar sua
posição. No entanto, um procedimento adicional é de praxe: usar os
eletrodos também para estimular regiões precisas do cérebro e, desse
modo, identificar zonas 'vitais', saudáveis, que não devem ser
removidas.
A estimulação é feita com o paciente acordado e consciente, para que ele
possa relatar as sensações provocadas. Estimular o cérebro com pequenas
correntes elétricas não dói: embora receba sinais dos nervos do corpo
todo, o cérebro não tem nervos que enviem sinais dele mesmo. Tudo corria
como de costume com essa paciente de 43 anos: a estimulação de zonas
auditivas, somatossensoriais ou motoras no cérebro provocava sensações
auditivas, corporais ou movimentos do corpo.
Até que a estimulação em dois dos 64 pontos testados do lado direito do
cérebro provocou uma sensação inusitada de deslocamento − ilusório,
claro − do corpo inteiro: ao receber uma pequena corrente elétrica sobre
o giro angular, a paciente sentia-se 'afundando na cama', ou 'caindo no
vazio'. A equipe, claro, não parou aí. Testaram uma corrente elétrica um
pouco mais forte sobre os mesmos pontos e, como num filme sobrenatural,
a sensação transformou-se em uma verdadeira experiência extra-corporal:
de olhos abertos, a paciente dizia ver lá de cima, como se levitasse
próxima ao teto, seu corpo deitado na cama.
Experiências extra-corporais 'naturais' costumam ser transitórias e
geralmente desaparecem quando se tenta inspecionar diretamente as partes
do corpo envolvidas. Com a experiência extra-corporal provocada pela
estimulação elétrica − e relatada pela equipe de Blanke na revista
Nature em 19 de setembro − não foi diferente: quando a paciente fechava
os olhos durante a estimulação ou olhava diretamente para seus braços e
pernas, eles apenas pareciam se mover em direção ao corpo, ou encolher.
A posição do giro angular é privilegiada para integrar informações
relativas à posição e a sensações complexas do corpo: ele fica na borda
do lobo parietal, que já havia sido implicado anteriormente na percepção
do espaço corporal, ou seja, na localização de objetos em relação ao
corpo. De quebra, outro vizinho próximo é o córtex vestibular, que
processa informações relativas à orientação da cabeça em relação à
gravidade, inclusive sensações de peso ou leveza. Com vizinhos desse
calibre, o giro angular talvez seja o lugar do cérebro onde nossa
'visão' interna do corpo é criada.
Se for assim, a dissociação do corpo que caracteriza a experiência
extra-corporal poderia ter uma explicação simples: uma falha na
integração sensorial e vestibular que o giro angular normalmente
desempenharia, causada, por exemplo, pela estimulação elétrica. Ou, na
experiência de quase-morte, pela falência metabólica do cérebro.
Esta, de fato, é a explicação alternativa para quem quase foi, voltou e
ficou tentado a acreditar que esteve do lado de lá mesmo. De acordo com
a 'hipótese do cérebro morrendo', defendida pela psicóloga Susan
Blackmore e pelo neurocientista Michael Persinger, as experiências de
quase-morte refletem o funcionamento residual em um cérebro que já não
recebe o suprimento habitual de oxigênio e glicose.
O giro angular, cuja estimulação elétrica é capaz de gerar a percepção
de desligamento do corpo, vem agora integrar o rol das regiões do
cérebro normalmente responsáveis pelas sensações vividas durante a
experiência de quase-morte. Talvez não por coincidência, todas essas
regiões − inclusive o giro angular − têm algo em comum: elas dividem o
suprimento de sangue fornecido pelas artérias cerebrais posteriores, que
irrigam a parte de trás do cérebro. Quando o corpo começa a se desligar,
talvez um dos resultados seja uma 'ativação de despedida' dessas zonas
do cérebro − e, com ela, as experiências que quem volta pode contar.
De qualquer forma, o fato de a percepção extra-corporal ser um fenômeno
do cérebro, e não o desligamento da alma, não diminuiria a experiência
na hora da quase-morte. E se isso de fato acontecer rotineiramente na
hora da morte? Quer maneira mais bonita de se ir embora do que se
despedir serenamente do corpo para ser acolhido por parentes queridos e
saudosos? O cérebro, que nos permite uma vida prazerosa, pelo jeito até
nos últimos momentos garante um final tranqüilo e digno a toda sua
existência.
Fonte: Blanke O,
Ortigue S, Landis T, Seeck M (2002). Stimulating illusory
own-body perceptions. Nature 419, 269-270. |
Suzana Herculano-Houzel
Coluna: O Cérebro Nosso de Cada Dia
Revista Ciência Hoje Online
05/11/04