Micro/Macro
Design nada inteligente
MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA
Sendo esta a "Micro/Macro" de número 400, decidi abordar a questão do
design inteligente (DI). Antes, uma distinção importante. Segundo seus
próprios proponentes, deve-se separar as idéias do DI -supostamente
científicas- e aquelas do criacionismo, claramente motivadas por
correntes evangélicas que adotam uma interpretação literal da Bíblia,
isto é, que afirmam sermos descendentes de Adão e Eva, que o mundo foi
criado por Deus há menos de 10 mil anos e que foi feito, não só o mundo
mas o Universo inteiro e todas as criaturas aqui na Terra, em seis dias.
Segundo o DI, a teoria da evolução de Darwin não dá conta da incrível
complexidade observada nos seres vivos. O processo darwinista, como é
visto hoje, de mutações aleatórias ao nível dos genes aliadas ao
mecanismo de seleção natural, onde as espécies mais bem adaptadas ao
ambiente são as que sobrevivem, não consegue explicar a intricada
bioquímica essencial para a vida, a coreografia das proteínas, máquinas
altamente sofisticadas que coordenam os vários processos metabólicos que
ocorrem ao nível celular. Não, afirmam os proponentes do DI, alguma
inteligência tem de estar por trás disso, algum misterioso "designer",
cuja identidade permanece desconhecida. Os proponentes do DI não afirmam
que esse designer seja Deus; pode ser uma inteligência extraterrestre,
sabe-se lá. Mas o véu é bem transparente: os maiores financiadores dos
centros de DI são grupos evangélicos conservadores. Para esses grupos, a
identidade da inteligência é óbvia.
Como analogia, dizem eles, considere a probabilidade de que um macaco,
selecionando letras ao acaso, possa escrever um romance; existe intenção
e não apenas aleatoriedade na natureza. E intenção significa
inteligência. Segundo o biólogo Michael Behe, autor de "A Caixa Preta de
Darwin" e um dos dois cientistas por trás do DI, existem sistemas que
exibem "complexidade irredutível", saltos que não podem ser explicados
por processos que levam gradualmente do simples ao mais complexo. Como,
pergunta Behe, surgiu algo como o flagelo que certas bactérias usam para
locomoção em meios líquidos, uma espécie de hélice que precisa de todas
as suas partes? Retira-se uma de suas 30 proteínas e ele deixa de
funcionar.
Esse tipo de argumento não rende. Quem disse que as 30 proteínas já não
estavam presentes na bactéria, fazendo outra função até que,
eventualmente, passaram a participar do flagelo? Mesmo em tecnologia
vemos esse tipo de evolução; partes que têm uma aplicação limitada, após
certo tempo, passam a ser essenciais para outras funções, como escreveu
o biólogo H. Allen Orr em artigo recente na revista "New Yorker". Orr
menciona os Sistemas de Posicionamento Global (GPS), adicionados hoje a
alguns carros como uma amenidade. Em 50 anos, carros serão possivelmente
dirigidos por computadores que não funcionarão sem GPS para se
posicionarem.
É verdade que ainda não entendemos como surgiu a primeira célula capaz
de se replicar. Mas isso não significa que nossa ignorância deva ser
preenchida por artesãos misteriosos, inexplicáveis. O que aprendemos com
isso? Absolutamente nada. O não-saber é a pré-condição do saber. Isso
sim reflete o uso da inteligência, a tentativa de explicar aquilo que
não sabemos. Inteligência tem intenção. Nenhum proponente de DI explicou
qual é a do "Grande Designer". Da próxima vez que você encontrar um
besouro caído de costas, aflito, tentando se virar, condenado à morte,
pergunte o que ele acha da inteligência do "Designer".
* Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do
Céu"
Publicado originalmente na coluna
Micro/Macro do caderno Mais!, jornal Folha de S. Paulo,
em 19/06/2005
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