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E a tal ‘cura do câncer’?
por Carlos Orsi ¹
Treze anos atrás, perdi alguém muito
próximo por causa de um câncer. Não vou entrar em detalhes aqui porque há
sentimentos de outras pessoas a preservar, mas enfim: mesmo se fosse válido (não
é), o argumento “você não pode condenar porque não sabe como é passar por isso”
não se aplicaria. Então, tendo tirado esse bode da sala, sigamos em frente.
“Condenar”, escrevi acima. Condenar o quê? A promoção irresponsável, a
distribuição inconsequente e a inacreditável liberação, em altas instâncias do
Judiciário, da droga fosfoetanolamina para o tratamento do câncer.
A
história toda é longa, mas em resumo: nos anos 90, um então professor de Química
da USP de São Carlos (hoje aposentado), Gilberto Orivaldo Chierice, convenceu-se
de que essa molécula, a fosfoetanolamina, poderia combater o câncer. Ele passou,
então, a produzi-la e a distribuí-la de graça, aparentemente usando recursos e
instalações da própria USP. A produção e a distribuição continuaram mesmo após a
aposentadoria do docente, e aconteciam mesmo sem que a droga tivesse sido
submetida aos testes necessários para comprovar sua segurança (que ela não faz
mais mal do que bem) e eficácia (que ela realmente funciona contra a doença).
Em 2014, o Instituto de Química de São Carlos proibiu, formalmente, a
distribuição de substâncias para uso clínico que não tivessem sido legalmente
testadas e registradas. Essa proibição — que, de resto, não passa de uma
consequência lógica das leis vigentes no país — atingiu a fosfoetanolamina, e
portanto desagradou a pacientes e parentes de pacientes de câncer que viam na
molécula uma esperança de cura, e foram à Justiça em busca de liminares.
A partir daí, jornalistas mais preocupados com números de audiência que com a
responsabilidade social inerente à profissão — ou, talvez, encantados pela
narrativa fácil do “gênio incompreendido que desafia o sistema” — passaram a
contribuir para a construção do mito da fosfoetanolamina como uma espécie de
panaceia underground. Mito que talvez tenha pesado em decisões recentes, do STF
e do Tribunal de Justiça de São Paulo, de exigir o fornecimento da droga a
pacientes.
O presidente do TJ-SP, José Renato Nalini, diz que não se
podem ignorar os relatos de pacientes que dizem ter melhorado após tomar a
fosfoetanolamina. Mas se esses relatos não podem ser ignorados, o que dizer,
então, de depoimentos como o do jornalista Alceu Castilho, que perdeu o pai para
o câncer e que ataca duramente “charlatão que distribui pílulas ‘contra o
câncer’ em nome da USP”, depois de conhecer em primeira mão o tratamento de
fosfoetanolamina? Quem há de dizer que a experiência dele é menos válida, ou
“menos real”, que a das pessoas que atribuem curas e melhoras à substância?
Alguém poderia argumentar que o número de casos divulgados de “clientes
satisfeitos” supera o de queixas, mas o ponto crucial aí está em divulgados.
Pessoas que se convertem a uma causa, ou que acreditam ter se beneficiado de um
tratamento, têm muito mais incentivos para vir a público do que as vítimas de
experiências negativas. Em questões de vida ou morte, muitas vezes acontece de
só termos a palavra dos que se salvaram. Se os que morreram são em número muito
maior, quem fala por eles?
É por isso que testes clínicos de segurança e
eficácia são muito mais do que meras complicações burocráticas. A história da
Medicina está repleta de histórias de tratamentos inúteis, muitas vezes até mais
prejudiciais do que as doenças que se propunham a tratar, que perduraram por
séculos porque a experiência individual de médicos influentes, a tradição e os
depoimentos dos sobreviventes pareciam apoiá-los. Porque ninguém tinha se dado
ao trabalho de contar os mortos, ou de tentar distinguir as curas que poderiam
ser realmente atribuídas ao tratamento das que teriam ocorrido por acaso, por
sorte ou pela resistência natural do paciente.
Fazer esse tipo de
distinção é um trabalho duro, que requer muita sutileza e um bom domínio de
técnicas estatísticas. Isso não se faz distribuindo pílulas ao léu e contando
quem volta para dizer que melhorou.
O caso do médico polonês, radicado
nos Estados Unidos, Stanislaw Burzynski tem alguns paralelos com o caso do
professor Chierice. Assim como o ex-professor, Burzynski, em algum momento,
passou a acreditar ter descoberto a chave para a cura do câncer — nesse caso,
proteínas que batizou de “antineoplastons”, ou ANPs.
Assim como o químico
brasileiro, Burzynski realizou alguns testes preliminares e publicou artigos em
revistas científicas sobre suas descobertas. E, assim como Chierice, em algum
momento ele decidiu que não precisava passar pela formalidade tediosa de um
teste clínico completo antes de oferecer sua cura ao mundo: até hoje, não há
prova científica cabal contra ou a favor dos ANPs, embora a preponderância da
evidência seja negativa. E assim como vem acontecendo com Chierice, Burzynski
foi adotado como uma espécie de santo salvador por parte da mídia e dos
pacientes.
As principais diferenças entre o americano e o brasileiro é
que Burzynski é um médico; um médico que cobra — caro — por seu tratamento; e,
provavelmente por causa disso, já encontra oposição organizada. Há um grupo
online de pacientes satisfeitos do Dr. Burzynski, que publica depoimentos
entusiasmados de curas milagrosas. Mas também há o “Outro Grupo de Pacientes de
Burzynski”, que se dedica a, exatamente, contar os mortos. O resultado é
trágico: “todos os pacientes que encontramos na mídia implorando por doações
para consultar Burzynski, e cujo destino pudemos descobrir, morreram”, diz o
site.
Neste ponto, alguém poderia perguntar: e daí? Talvez a
fosfoetanolamina seja mais eficaz que os tais ANPs. E ela é distribuída de
graça, logo ninguém está sendo lesado. Por que não deixar Chierice e seus
pacientes em paz?
Primeiro: nada é “de graça”. As decisões judiciais em
favor da droga impõem custos ao Estado. Dinheiro que poderia estar sendo usado
para comprar antibióticos para postos de saúde, ou para financiar pesquisas
sérias sobre o câncer está sendo desviado para sustentar o que, até onde se
sabe, não passa de uma ilusão. Segundo: mesmo nesse nosso mundo comoditizado,
alguém ainda deve se lembrar de que tirar dinheiro das pessoas sob falsos
pretextos não é a única forma de lesá-las. Há feridas emocionais que cortam
muito mais fundo que a conta bancária, e uma pessoa imbuída de falsas esperanças
pode acabar tomando decisões trágicas em situações de vida ou morte.
Esse
“e daí?” lembra muito o “qual o problema?” que se costuma ouvir quando surgem
críticas ao uso das tais “práticas integrativas e complementares” na Medicina. A
mim parece haver uma ligação direta entre a leniência do establishment médico, e
do sistema de saúde pública, para com práticas como homeopatia e acupuntura e o
sucesso popular da fosfoetanolamina, bem como sua liberação judicial.
Ao
reconhecer como legítimas as especialidades médicas “alternativas”, autoridades
sanitárias e conselhos médicos dão o recado de que testes clínicos rigorosos são
opcionais, não realmente necessários, para validar um tratamento. Não é de se
estranhar que o Judiciário os acompanhe.
¹
Carlos Orsi é repórter do Jornal da Unicamp.
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