O ceticismo do cientista
Marcelo
Gleiser
especial para a Folha
Volta e meia, leitores me questionam sobre o que lhes
parece ser o exagerado ou pouco razoável ceticismo do
cientista. As abordagens variam. Algumas vezes, acham
inconsistente um cientista se dizer ateu quando não pode
responder a certas questões básicas, como, por exemplo,
a origem do Universo ou da vida. Dizem eles: "Vocês
falam do Big Bang, o evento que iniciou tudo. Mas de onde
veio a energia que provocou esse evento? Como falar de
algo material surgindo do nada, sem a ação de um ser
imaterial, isto é, divino?" Outras críticas dizem
respeito à descrença em fenômenos paranormais,
sobrenaturais, OVNIs e seres extraterrestres, espiritismo
etc.
Segundo estatísticas recentes feitas pela fundação
Gallup nos Estados Unidos, em torno de 50% dos americanos
acreditam em percepção extra-sensorial. Mais de 40%
acreditam em possessões demoníacas e casas
mal-assombradas, e em tomo de 30% crêem em
clarividência, fantasmas e astrologia. Não conheço
estatísticas semelhantes para o Brasil, mas imagino que
os números devam ser no mínimo comparáveis.
Sem a menor dúvida, a luta do cético é ingrata; ele
estará sempre em minoria. Existem muito mais colunas
sobre astrologia do que sobre astronomia ou ciência nos
jornais e revistas do Brasil e do mundo. Mas, sem
ceticismo, a sociedade estaria fadada a ser controlada
por indivíduos oportunistas que se alimentam dessa
necessidade muito humana de acreditar. Ela existe para
todos não há dúvidas. Mesmo o cético deve acreditar
no poder da razão para desvendar os muitos mistérios
que existem. A paixão que o alimenta é a mesma do
crente, mas direcionada em sentido oposto.
Devido a esse ceticismo, muitas vezes os cientistas
(incluindo este que lhes escreve) são acusados de
insensibilidade. De jeito nenhum. Eu tenho grande
respeito pelos que acreditam. O que me é difícil
aceitar é a exploração que existe em torno dessa
necessidade, a exploração da fé. Na Índia, por
exemplo, recentemente apareceram milhares de
"homens-deuses", que se dizem meio deuses, meio
gente. No México, funcionários do governo frequentam
seminários sobre como usar o poder dos anjos. O Peru
está cheio de psíquicos, enquanto na França são
aromaterapeutas. Testes em laboratório visando verificar
poderes extra-sensoriais invariavelmente falham.
O famoso paranormal israelense Uri Geller, que dobrou
garfos na frente de milhões nos anos 70, foi
desmascarado como fraudulento. O meu orientador de
doutorado na Inglaterra, impressionado com Geller e
outros médiuns, montou um laboratório para testar seus
poderes. Ele o fez com ótimas intenções, para explorar
a origem desses poderes de modo a divulgá-las para o
resto da humanidade. Mas falharam todos.
Voltando à questão do Big Bang. A religião não deve
existir para tapar os buracos da nossa ignorância. Isso
a desmoraliza. É verdade, não podemos ainda explicar de
forma satisfatória a origem do Universo. Existem
inúmeras hipóteses, mas nenhuma muito convincente.
Mesmo se tivéssemos uma explicação científica,
sobraria uma outra questão: o que determinou o conjunto
das leis físicas que regem este Universo? Por que não
um outro? Existe aqui uma confusão sobre qual é a
missão da ciência. Ela não se propõe a responder a
todas as questões que afligem o ser humano.
A ciência, ou melhor, a descrição científica da
natureza, é uma linguagem criada pelos homens (e
mulheres) para interpretar o cosmo em que vivemos. Ela
não é absoluta, mas está sempre em transição,
gradativamente aprimorada pela validação empírica
obtida através de observações. A ciência é um
processo de descoberta, cuja língua é universal e, ao
menos em princípio, profundamente democrática: qualquer
pessoa, com qualquer crença religiosa ou afiliação
política, de diferentes classes sociais e culturas pode
participar desse debate. (Claro, na prática a situação
é mais complexa. )
Ela não terá jamais todas as respostas, pois nem
sabemos todas as perguntas. O cético prefere viver com a
dúvida do que aceitar respostas que não podem ser
comprovadas, que são aceitas apenas pela fé. Para ele,
o não saber não gera insegurança, mas sim mais apetite
pelo saber. Essa talvez seja a lição mais importante da
ciência, nos ensinar a viver com a dúvida, a
idolatrá-la. Pois, sem ela, o conhecimento não avança.
Marcelo Gleiser é
professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
Publicado
originalmente na coluna Micro/Macro do caderno Mais!,
jornal Folha de S. Paulo, em 16/03/2003
Copyright
© Folha de São Paulo
|